Maria Meireles Ramos

por Maria Meireles Ramos

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Tina sabia que o concerto ia ser difícil. Sentia-se num imenso desarranjo: o coração batia-lhe de forma descoordenada e a respiração fazia-se ouvir em ritmos desregulados. Ainda pensou que a solução para a sua situação poderia estar num xarope qualquer, mas recusou-se a acreditar nisso. Sabia que amenizar-se ia muito além da toma de um xarope. Além disso, detestava xaropes.

O avô de Tina também detestava xaropes e, da última vez que recebera uma visita da neta, teimara que de nada lhe valeria tentar curar-se das constipações com medicamentos se não tivesse ideia nenhuma de como é que se havia constipado. Se eu não me lembrar que fiquei assim porque fui para a rua sem casaco, provavelmente, vou voltar a fazer a mesma coisa e constipar-me de novo, disse. Tina era perspicaz o suficiente para descortinar o significado das palavras do avô: para se curar daquele estado ofegante, antes de mais, convinha perceber o que é que a tinha levado a ficar assim.

Tina ia atuar dali a poucos minutos, mas tinha a perfeita noção de que não era isso que a assustava. O concerto, em si, era o menos aterrorizador de tudo. Tinha treinado horas e horas a fio. Estava preparadíssima para apresentar a sua composição musical. O problema é que era O concerto – e toda a sua família estaria lá para assistir. Sabia que era boa naquilo que fazia, mas não sabia se também o seria para os outros e temia ser causa de desilusões.

Tina espreitou o público pelos bastidores. A mãe e o pai estavam sentados na primeira fila, com um ar ansioso. O avô também já lá estava e, desta vez, tinha trazido casaco; vencera a fase das constipações e tinha conseguido comparecer no primeiro concerto da sua adorada neta.

O tempo passou, enquanto Tina tentava que os seus nervos também passassem… Até que a hora chegou. Tinha de entrar em palco.

Era preciso coragem: avançar com toda a força rumo aos holofotes… e tocar. Era preciso, na verdade, muita coragem, pois ia quebrar o silêncio — e, nos silêncios, perduram as expectativas e a esperança ainda não se esfumou. Tudo o que Tina queria era que a sua música, ao quebrar o silêncio, não quebrasse também as expectativas de quem lhe era querido. Tina queria que a sua música não fosse destruidora de nada… queria que fosse uma cura, tal como era para ela quando tocava em privado.

Arriscou a primeira nota musical… e foi incrível. Bastou começar a tocar para entrar no seu pequeno mundo à parte e começar a acalmar-se. Em momentos não muito mais extensos do que um ápice, Tina tinha a certeza de que nunca mais sentiria tanto medo de desiludir os seus espectadores, pois, a si, a música nunca a desiludia. Sabia que poderia continuar a ficar nervosa, antes de atuações, mas, ao perceber o seu medo, também havia compreendido que lhe bastaria dedilhar um pouco a sua concertina para concertar o receio.

E que gosto teve Tina em ver que a sua música tinha sido, de facto, o melhor remédio!… Não só para ela, mas para o avô que, ao vê-la e ouvi-la, sorria com tal afinco que aparentava um aspeto ainda mais saudável.

 

About the Author: Maria Meireles Ramos
Maria Meireles Ramos
As letras sempre lhe foram refúgio e ponte, do mundo e para o mundo. Assim, desde os primórdios da adolescência (até hoje) que os cadernos e blogs lhe são companhia e alimento para a alma. Fascinada por histórias e crente (até ao tutano) no poder das palavras, formou-se em psicologia e fez de psicóloga a sua profissão. Sonhadora incurável, no frenesim da rotina e da vida, ainda rabisca uma carreira e calmaria paralela no universo da escrita.

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