Sónia Brandão

por Sónia Brandão

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Agora

“Lembras-te da nossa primeira troca de olhares?”
Ele olha-me sem perceber a pergunta…

Antes

Naquele dia, saí sem qualquer pretensão. Saí sem expetativas. Ia ser uma saída de amigos, para colocar a conversa em dia. Como alguém me disse depois, cheio de bom humor, esses são os dias mais perigosos.
Jantámos, rimos, conversámos e falámos da vida dos outros. Como boas pessoas que somos, passámos bons momentos, como, tantas vezes, fizemos no passado.
Nesse dia, em algum momento, trocámos um olhar. Mantivemos os nossos olhos colados mais do que é suposto, mais do que uma simples troca de olhares.
Sei que, nesse momento, decidimos os dois que tudo ia mudar a partir daquele segundo. Ambos criámos ilusões para nós. Fizemos planos dentro da nossa cabeça, sem saber o que o outro estava a pensar. Entrámos noutra dimensão, aquela onde tudo é possível, porque o que comanda são os sonhos.
Sei que o tempo parou para nós. Sei que, naqueles segundos, a nossa vida mudou, a nossa realidade entrou noutra era.
Desviámos o olhar, com total desconforto. Talvez porque nenhum dos dois esperava esse momento. Talvez porque aquilo que criámos para nós, mesmo sem sabermos dos planos do outro, fosse demasiado para lidar em poucos segundos.
Mais tarde, muito tempo depois, sorrimos um para o outro e tentámos. Tentámos tudo para manter esses pensamentos, essa realidade, criada na nossa mente, somente lá noutro plano. Mas a vida tem sempre o seu fado…
Esse olhar mudou tudo. Por mais que tenhamos adiado, foi inevitável o futuro acontecer…

Agora

Finalmente, percebe a pergunta e sorri. Mesmo neste momento, a lembrança desse olhar melhora tudo.
“Lembro…”
Trocamos um olhar cheio de dor, de tudo o que poderia ser, mas nem sempre foi.
“Voltavas lá?”, pergunto.
Desta vez não trocamos olhares. Ele fica cabisbaixo e suspira. Depois de alguns momentos. levanta o rosto e sussurra:
“Sim…”
Olho-o com lágrimas nos olhos, e digo com voz embargada:
“Eu também….”

Antes

Criámos a nossa realidade. Criámos a nossa vida, cheia de defeitos, de momentos desnecessários. Cheia de momentos que valeram tudo o resto. Cheia de gargalhadas. Cheia de tudo o que sempre imaginámos e muito mais. Fomos felizes. Sempre que nos permitimos a isso, fomos infelizes. Sempre que a vida nos deu esses momentos. Acima de tudo, vivemos juntos, porque tivemos a coragem de transformar aquele olhar em algo real, sem medo do mundo, sem medo do outro. Demos tudo o que pudemos. Tudo o que nos era humanamente permitido.

Agora

Olho o homem que tenho à minha frente, aquele que escolhi e que me escolheu para caminharmos juntos nesta estrada que é a vida, e choro.
Choro porque, mesmo tendo criado tudo o que sempre almejamos, não foi o suficiente…
“Não mudaria uma vírgula em tudo o que vivemos. Nunca poderia alterar aquele dia. Sem ele, o meu eu atual não existiria. Tu ajudaste ou, melhor, criaste parte do que sou hoje”, afirma completamente convicto do que diz.
Olho-o e digo:
“Por vezes, precisamos de desistir, mesmo sabendo que não é o que queremos, para não acabarmos por desaparecer no processo…”
Acabamos.
Esta relação, criada e decidida naquele olhar, acabou. Vamos continuar a viver, a seguir a estrada da vida, mas desta vez em direções opostas.
Trocamos um beijo, o último. Olhamo-nos como se fosse a primeira vez que nos vemos.
“Amo-te hoje e sempre. Quem fez parte de mim nunca poderá deixar de ser amado”, afirmo, enquanto viro as costas ao meu passado.
Antes de poder olhar para o meu futuro, ouço a sua voz:
“Amo-te mais, porque sempre te quis mais.”
Não olho para trás.
Levanto o meu rosto, com lágrimas a descerem dos meus olhos, e contemplo o meu futuro.

 

About the Author: Sónia Brandão
Sónia Brandão
Apaixonada por palavras, aprendeu, desde nova, a criar realidades paralelas na sua mente — onde tudo era possível. "Amor de Perdição" foi o primeiro livro que leu. Tinha 13 anos e foi a mãe que lho sugeriu para se ocupar. Desde então, nunca mais parou de ler. Durante alguns anos, no entanto, parou de escrever: sentiu que tinha deixado de fazer sentido. Mas o confinamento fê-la regressar à escrita com mais força e determinação. Este ano, surgiu a vontade de partilhar com os outros o que coloca no papel.

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