Maria Reis

por Maria Reis

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Aprendi a lidar com o frio desde tenra idade!

Aprendi a dar valor a um bom a um bom agasalho, quando quase ainda não sabia falar. Ainda hoje recordo aquele casaco vermelho com um capuz debruado a arminho branco e a vaidade com que o envergava, sentindo-me a Menina do Capuchinho Vermelho!

Caminhei, pela neve, a caminho da escola, onde o frio era tal que o simples ato de segurar um lápis se tornava quase impossível, de tão geladas que estavam as mãos! Foi nessa época que nasceu, em mim, o gosto pelos xailes — gosto que ainda hoje conservo. Sim, mesmo usando o casaco comprido de fazenda de lã, típico da época, eu exigia o xaile no qual me embrulhava, sentindo maior aconchego.

Em casa poderia ter o conforto, mas era na rua que estavam os amigos, as brincadeiras…

Tal era o frio que as mãos poderiam estar geladas e engaranhadas, mas brincávamos! Havia o jogo da macaca e o saltar à corda, jogos que nos aqueciam os pés. Havia o esconde-esconde, as corridas e as gargalhadas… O frio como que passava ao lado!

E a neve? A neve era a cereja no topo do bolo! Impossível esquecer as lutas de pelotadas, a animada brincadeira em que as bolas de neve voavam de uns contra outros. Por vezes, aconteciam os passeios à serra, onde a neve nos fazia escorregar e cair, onde tanto nos divertíamos e nos sentíamos tão livres!

Sim, éramos livres. A rua era a nossa liberdade! As brincadeiras eram o nosso elo de ligação. Nas brincadeiras definíamos as regras e aprendíamos a respeitá-las e, quase sem nos darmos conta, assim aprendíamos a ser responsáveis pelos nossos atos. Nessas brincadeiras fizemos amigos para a vida!

Também o frio me faz recordar as viagens à aldeia…

Em casa do avô, havia o aconchego da lareira, havia o escano onde nos sentávamos e onde, com o lume a crepitar e tendo a candeia pendurada na chaminé como única fonte de luz, muito me encantei com os contos que, ali, ouvi nos serões de inverno.

Aquela cozinha estará sempre viva na minha memória. Também estarão sempre vivos, nas minhas recordações, aqueles dias de enorme azáfama vivida, quando acontecia a matança do porco.

A matança do porco começava com a minha fuga para bem longe… esse longe era, para mim, aquele quarto onde me refugiava deitada na cama, tapada com cobertores e as mãos pressionando os ouvidos. Assim fugia e me protegia dos aflitivos gritos do porco. Contudo, ultrapassado que estava esse, para mim, doloroso momento, eu assistia entusiasmada a tudo que se seguia.

A minha mente gravou toda essa movimentação, todos os procedimentos desde a meticulosa preparação do porco para ser aberto até ao início do seu aproveitamento, quando se preparavam os primeiros petiscos. Nesse dia tudo culminava com o tradicional, animado almoço, farto desses bons petiscos e regado de bom vinho. O porco, aberto e limpo de todas as vísceras, ficava pendurado na adega para, no final do dia seguinte, ser devidamente desfeito.

A tudo eu assistia!

Embora o frio fosse de cortar a respiração, eu acompanhava sempre as mulheres que iam ao ribeiro lavar as tripas do porco que, depois de devidamente tratadas, eram utilizadas na confecção de deliciosos salpicões.

Durante dias, aquela cozinha era palco das mais diversas atividades a que o aproveitamento das carnes obrigava. As panelas, que ferviam ao lume, exalavam sempre um aroma que despertava o apetite. Naquela cozinha havia calor e fartura, mas também solidariedade. Essa solidariedade, também vivida por mim, foi uma gratificante aprendizagem na minha vida e acontecia no dia da confecção das alheiras.

Para o meu olhar de criança era enorme aquele recipiente onde se fatiava o pão. Depois do pão, adicionavam-se as carnes previamente preparadas para o efeito, a deliciosa calda e os respetivos temperos. Terminada esta preparação, estavam prontas as migas

Era, então, que acontecia esse gesto solidário.

Contavam-se as famílias mais carenciadas e, para cada uma delas, era retirada uma porção dessas migas, seguindo-se a respetiva distribuição. Recordo que se fazia sentir sempre um frio cortante, contudo eu lá ia também de porta em porta.

Finalmente, no teto da cozinha apareciam, suspensas do mesmo, as tradicionais varas onde se alinhavam os mais diversos e deliciosos enchidos que seriam uma boa base de alimentação. Nas salgadeiras estavam enterrados os presuntos que, geralmente, se encertavam por altura da Páscoa.

Sim, assumo que esta cozinha é uma preciosidade guardada no meu coração. Nesta cozinha vivi momentos felizes de grande carinho e conforto.

Tantas vezes, eu me refugiei naquela cozinha quando regressava, gelada, depois das brincadeiras da rua. E como é tão gratificante poder sentir, ainda hoje, aquele aconchego que o colo do meu Pai, aqui, me proporcionava, aquele conforto que as suas mãos me traziam quando, com ternura, me acariciavam, me aqueciam…

About the Author: Maria Reis
Maria Reis
Nasceu em 1947. É transmontana, sonhadora. Está aposentada da profissão de professora, tendo exercido docência nos 1º e 2º ciclo de Ensino Básico. O seu percurso de vida foi seriamente afetado pela Guerra Colonial Portuguesa, travada entre 1961 a 1974, período que viveu intensamente com o sofrimento de dolorosas perdas, saudades e muita instabilidade emocional. Acredita que a vida só faz sentido quando vivida com amor.

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