Sónia Brandão

por Sónia Brandão

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Tudo passa.

Tudo se transforma.

Se, naquele dia, eu tivesse ido na corrente, hoje não poderia apreciar as cores que me fazem rodopiar.

As decisões mais perigosas são as que chegam calmamente, porque dessas não podemos fugir — elas são nossas, mesmo que não as tenhamos tomado na correria da mente.

Naquele dia, mudei todo o rumo do meu pretenso destino, acho — ou, então, somente embarquei no que há muito era o caminho que deveria seguir, mas que era toldado pelo medo irracional e invisível.

Nada aconteceu de um dia para o outro.

As coisas foram tomando forma com o passar do tempo e, quando tomei consciência da realidade, já tudo estava a acontecer.

As surpresas que a vida traz tornaram-se cada vez menos surpresas e cada vez mais dolorosas lembranças constantes da realidade.

Mais daquilo que, em algum momento, espremido, se torna no nada.

Nada.

Fiquei ali, perdida na felicidade que os outros ainda sentiam com a minha presença.

Mas eu?

Eu tinha cada vez menos momentos felizes e afundava-me, cada vez mais, na tristeza e nas decisões que não queria tomar.

Naquele dia, acordei com as decisões tomadas, mesmo sem o saber.

Olhei para o homem que dormia ao meu lado e, por breves momentos, recordei o que fomos um dia. Recordei o amor, o carinho, acima de tudo, o respeito que eu tinha por ele, e sonhei, de olhos acordados, na possibilidade de ainda ser assim. O sonho em nada correspondia à realidade que vivia. Desviei o olhar dele e contemplei o quarto que criámos juntos. Vi as fotos emolduradas de momentos únicos que vivemos e sorri para aquela que me sorria de volta, aquela que ainda tinha o brilho no olhar.

Levantei-me e segui a rotina da manhã.

Ainda não era o momento de falar, mesmo não tendo a certeza do que iria dizer, ou se o iria fazer…

Saí antes dele, sem me despedir. Precisava pensar sozinha no que estava a acontecer dentro de mim.

Estive o dia todo em piloto automático, perdida em pensamentos que ainda hoje tenho dificuldade em verbalizar.

Eu amei a minha vida em algum momento.

Amei a realidade que criei com ele e com aqueles que me rodeavam, mas, em algum momento, as coisas descambaram — perderam a magia ou o rumo que eu queria que tivessem.

A maior dor é sentir a solidão de estar acompanhada.

Porque quem nos acompanha não vê, ou escolhe não ver, o quanto estamos perdidas — e foi isso que aconteceu.

Todos perceberam, ele percebeu a minha distância, a minha infelicidade, mas, como me disse nesse dia, achou que era uma fase. Uma fase que iria passar, e eu voltaria a ser quem tinha sido um dia.

Mas isso nunca, ou raramente, acontece, porque quem fomos no passado não regressa. A vida dá-nos novas experiências para mudarmos, e avançamos mesmo sem percebermos. Isso aconteceu comigo.

Talvez mais comigo, mas com ele também. Tudo era diferente. Dez anos antes éramos jovens idealistas, cheios de sonhos e esperança. Esses sonhos foram mudando consoante a vida nos empurrava para um ou outro lado.

E, no meio disso, fomos esquecendo.

Esquecendo o porquê de ainda estarmos aqui juntos, o porquê de termos escolhido este caminho.

Nessa noite, sentei-me no escuro, pensando em como começar a conversa que iria alterar grande parte da minha realidade.

Ele abriu a porta, acendeu a luz, olhou-me e sentou-se em frente a mim.

— Acabou? — questionou calmamente.

Olhei-o e disse o que me ia na alma:

— Acabou há muito tempo, mas só hoje tenho coragem de o aceitar.

— Porque esperaste? — perguntei, porque, por mais parvo que seja, sei que ele esperou o meu tempo. Não saiu. Esperou que eu estivesse pronta para o fazer.

— Mesmo sabendo que tinha acabado, continuo a amar-te. E tu nunca serias feliz se fosse eu a partir, nunca estarias em paz contigo se eu não esperasse o teu tempo — diz, com lágrimas nos olhos.

Este é o homem que amei.

Este é o homem que respeito. Este é o homem com que todos vão ser comparados no futuro, porque poucos teriam a coragem para dizer estas palavras, hoje.

— Este é quem eu amo e sempre vou amar e respeitar. Obrigada por isso — digo, olhando-o nos olhos, para ter a certeza de que ouve cada uma das minhas palavras e não se limita a acenar ao som das mesmas.

Sorrimos, com lágrimas a correrem pelo rosto.

Este é o fim desta dupla. Ambos sabemos que não o podíamos adiar mais. Estávamos os dois sozinhos, acompanhados — e nada pode ser pior do que isso.

Depois desse dia, não nos voltámos a encontrar durante anos.

Conscientemente, o universo reconheceu que éramos muito melhores longe um do outro.

Pouco ou nada soube dele ao longo do tempo. Não procurei saber.

Preferi ficar com as boas memórias da nossa estória, mesmo que elas se tenham desvanecido com o passar do tempo.

Voltei a amar.

E, ao contrário do que pensava, não os comparei.

Eram pessoas diferentes.

Este novo amor foi diferente do anterior, mesmo porque eu era diferente.

Tinha cores diferentes a rodearem-me.

About the Author: Sónia Brandão
Sónia Brandão
Apaixonada por palavras, aprendeu, desde nova, a criar realidades paralelas na sua mente — onde tudo era possível. "Amor de Perdição" foi o primeiro livro que leu. Tinha 13 anos e foi a mãe que lho sugeriu para se ocupar. Desde então, nunca mais parou de ler. Durante alguns anos, no entanto, parou de escrever: sentiu que tinha deixado de fazer sentido. Mas o confinamento fê-la regressar à escrita com mais força e determinação. Este ano, surgiu a vontade de partilhar com os outros o que coloca no papel.

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