Estefânia Barroso

por Estefânia Barroso

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Tudo, aos poucos, vai desaparecendo da minha memória. Todas as minhas recordações começam a apresentar, aos poucos, contornos pouco definidos. Numa imagem quase infantil, penso que elas se vão derretendo, desfazendo, passo a passo, um dia de cada vez. Sei que, lentamente, tudo irá liquefazer-se e, gota a gota, ir-se-ão juntar num enorme lago: o Lago do Esquecimento (com que outro nome te poderia batizar?). Nele irão repousar os dias bons e os dias maus vividos ao longo destes anos, as pessoas de quem gostei, as pessoas que fizeram parte da minha vida, os lugares que mais amei na minha vida — a casa onde cresci; a minha aldeia, onde quero que as minhas cinzas sejam depositadas quando esta agonia, por fim, terminar; os sorrisos que mais me marcaram na minha vida…

Sei dessa condição há algum tempo. Eu e o meu médico já nos conhecemos de outras aventuras, somos amigos de longa data e, pela amizade que partilhamos há muito, não me informou da doença com meias palavras e paninhos quentes. Olhou-me diretamente nos olhos e, numa voz lapidar, pronunciou, com todas as sílabas: Alzheimer.

A partir dessa informação, ficou claro para mim que o caminho que tinha pela frente não seria fácil de trilhar, recheado de buracos que se iriam criar na estrada — ou na minha mente —, dificultando o meu percurso até ao fim. E que fim! Será que me lembrarei, sequer, de quem sou quando chegar essa hora? Duvido, muito. Mais não serei do que um vegetal sem qualquer noção do que é ser e do que é viver. Que sentença a minha. Penso que ninguém merece este tipo de destino.

Sei que irei esquecer a cara dos meus pais, dos meus irmãos. Os amigos passarão a ser um bando de estranhos que me deixarão inquieta com os seus gestos de familiaridade. Sei que irei olhar para a nossa casa como um local estranho, não fazendo ideia por que raio fui ali parar e não conhecendo as pessoas que ali coabitam. Sei que, no fim, o mundo será apenas um lugar estranho de onde quero fugir. Mas espero que esses esquecimentos venham por uma ordem que eu mesma poderei definir. Gostaria de esquecer, antes de mais, as tristezas, as dificuldades, os sofrimentos. Em seguida, poderia esquecer as rotinas, aqueles dias que passavam num tom morno, sem interesse. E assim seguiríamos até que as últimas memórias apagadas fossem as que nos fazem dizer que viver vale a pena.

Assim, quero deixar escrito que tenho a esperança de que as últimas imagens que povoarão a minha memória serão o penhasco perto da minha casa, para onde corria sempre que estava triste, quando sofria das minhas ansiedades e procurava acalmá-las observando o mar e o vaivém das ondas. E quero que a última imagem a povoar o meu cérebro doente seja a tua imagem. O meu último desejo é que possas persistir na minha memória até ao último dia (ou perto disso). Peço aos deuses que sejas tu a última pessoa que este meu cérebro vai esquecer. E espero que, mesmo quando o esquecimento chegar, o meu tato, o meu olfato, te reconheçam de algum modo. Espero que seja possível ao meu corpo sentir, até ao fim dos seus dias, a sensação de porto seguro e reconforto que sempre me ofereceste. Foste, e és, o meu verdadeiro amor. Foste o primeiro homem que amei com todo o meu corpo e alma. Primeiro, num amor que se avizinhava sem esperança e, mais tarde, contra tudo e contra todos, num amor vivido a cem por cento. És a minha pessoa, e quero dizê-lo hoje e todos os dias.

Prometo que, a partir de hoje, irei colocar estes pensamentos junto à tua fotografia e que os irei ler todos os dias. Irei afastar esta imagem que se vai formando na minha mente de que tudo à minha volta se está a desfazer e a derreter. Deixarei passar as horas ao ritmo que lhes apetecer, prometendo — a mim e a ti — que nunca irás repousar no meu lago do esquecimento. Amo-te, e sei que, de alguma forma, não irei esquecer-me disso. Sei que irás persistir em mim até ao meu último fôlego. Afirmo hoje que serás a minha «Persistência da Memória».

Nota: Este conto foi escrito tendo como inspiração o quadro «A Persistência da Memória» de Salvador Dali

About the Author: Estefânia Barroso
Estefânia Barroso
Nascida em terras francesas (Chambéry) em 1976, rumou a caminho de Portugal ainda na infância. Embora sonhasse ser veterinária, cedo percebeu que era no mundo das letras que o seu futuro se encontrava. Licenciou-se em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Estudos Portugueses, e iniciou a sua vida profissional como professora de Português. Mais tarde, após terminar Mestrado em Educação Especial, tornou-se professora de Educação Especial. Leitora ávida e autora dos livros “Contos com gente lá dentro” e “Contos com bichos lá dentro”, tem mantido o blogue “Steff’s World – a Soma dos Dias”, onde escreve crónicas e contos. Para além disso, escreve para jornais como o P3 do Público e alguns jornais locais.

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