por Albertina Silva

A crónica deste mês tem pouca poesia, pois não encontro metafísica para embelezar o início da maldade humana: a comparação.
Compreendo a dualidade. A comparação, não.
Mal nascemos e os adultos, na sua inocente ignorância, já comparam os bebes, depois as crianças na escola, depois as atividades, depois e depois e depois e o mundo cresce e se educa assim.
O corpo, o nosso corpo, casa de algo tão puro e desafiante, é constantemente sujeito a agressões subtis e outras bem cruéis, tão esgotado, tão vendido, tão, por nós próprios também, julgado.
Dizer: Não quero mais. Não aceito mais. Não me permito mais viver assim.
Homens e mulheres perfeitos que somos, como somos, do jeito que estamos e somos, sucumbem a emoções destrutivas e até mortais, por causa da infame comparação.
Depois, já nem precisamos dos outros. Já conseguimos nós próprios ser o carrasco da nossa felicidade.
Ninguém escapa. Ninguém.
Houve uma altura, na minha vida, em que pensei que era preferível fechar-me em casa do que sair e viver, tamanha a opressão de viver em constante comparação.
Foi uma bofetada do universo, para me despertar para minha própria beleza, meu direito a ser como gosto, estou e sou, a passar por meus processos à minha maneira e a ter muita paciência e carinho pelo desgaste que o meu corpo possa manifestar.
Pelos outros, também.
Foi uma bofetada do universo, pela falta de capacidade de honrar e agradecer à minha pele que me protege e permite viver neste lugar. Que me faz sentir e experimentar. Que vive comigo, que me aceita, que me ama.
A dos outros, também.
Esta vida que existe, em mim, e que não posso mais comparar com a de ninguém, ou permitir que me façam sentir isso, mesmo que subtilmente…
Temos muita sorte.
Ninguém nos atira ácido por sermos mulheres. Então, não temos marcas insuperáveis para uma mente e coração fracos, que esta cultura ainda tenta manter em nós.
Ninguém nos obriga a fazer nada que não queiramos. Então, não temos marcas invisíveis que possam impedir a orgânica do nosso corpo de se sentir livre para dar e receber.
Nascemos com dois braços, duas pernas, todos os orgãos nos sítios certos, cumpridores da sua função.
Quando o espelho reflete a nossa imagem, vem completa. Vemos porque temos olhos que enxergam. Ouvimos porque temos o canal auditivo intacto. Sentimos porque temos todas as nossas funções a funcionar perfeitamente.
Temos sorte.
A revista pode dizer diferente. Não me importa a revista.
O amor pode dizer diferente. Esse amor não é bom.
A moda pode não ser adequada a todos os corpos. Graças a Deus, tecido não falta e bom senso também.
As curvas podem fazer um homem andar à roda. Mas que nenhuma mulher se deixe levar por essa roda dos ratos e de ratazanas. E vice versa.
Deixemos, então, a noite escura para os olhos de gelo.
Não comparemos mais nada com nada, ou alguém com alguém.
O mundo carrega muita dor.
Precisamos começar a pegar nessa dor e a transformá-la em algo que, se não chegar perto e depressa ao amor, pois que seja de compreensão, respeito, e muito carinho.
A semente.
Nunca vou compreender por que se comparam pessoas, por isso nunca compreenderei a guerra, a violência, a morte por ódio.
Nós não podemos deixar a dor de lado, e vender o amor como pílula milagrosa.
Saltos desses, por norma, têm um grande desfiladeiro a separar uma margem da outra.
Comecemos pelo básico: eliminar a comparação.
Esse pequeno gesto, diário, pode começar a surtir um grande efeito planetário.
Elimina em ti. Ajuda a eliminar no outro, desvalorizando.
Que se respeite a vida.
Mais do que qualquer coisa, ou pessoa: que se respeite a vida.
O mundo tem muita dor.
É nosso dever cuidar. Cuidar que ninguém entre no espaço sagrado de alguém, e destrua o que pode demorar uma vida, ou mais, a reconstruir.
Uma palavra pode mudar o mundo de alguém: que seja para melhor.
Um gesto pode significar o início de um novo mundo para alguém: que seja para melhor.
Um bebe já ouve e assimila, ainda na barriga da sua mãe: que seja para melhor.
É o adulto de agora.
Agora: é sempre quando a mudança acontece.
O nosso corpo não é apenas um corpo.
Um julgamento não é apenas uma opinião.