Albertina Silva

por Albertina Silva

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Escreve com o coração.

Escreve com o que está lá dentro neste momento, e eu sei, eu sei, que é difícil e tão simples, pequena. 

E dói-me o centro do peito e o meu coração é mais à esquerda. E dói-me uma parte do corpo que não consigo tocar, mas como a sinto, pequena, parece um órgão cuja função ainda não descobri. E cutuca-me, faz-me cócegas, rasga-me. Desculpa, mas rasga-me mesmo, que sinto que, se respiro um pouco mais forte, talvez morra. É o medo. O medo tem destas coisas. Crava-se dentro de um sítio de nós, e fica lá, engorda, ocupa espaço, inventa desculpas e justificações e engorda e engorda e eu apertada nisto, pequena.

Escreve com o coração.

Mais disto e eu tão cheia. Vens aqui, sentas-te ao meu lado, e eu tão cheia, sem espaço para ti, pequena. E tu, que insistes em fazer-te transparente, fina como um pequeno fio, quase não ocupas espaço, quase não te via, se a tua voz não me falasse tão clara como água, tão poderosa como um vento que nos passa e não levanta, mas deixa um sabor gelado na orelha — vai, por detrás do pescoço, até se tornar um arrepio pela coluna abaixo e a gente aconchega-se; só nos sabemos aconchegar, pequena, do frio. És tão linda, meu Deus.

Escreve com o coração.

Disse-te que tivesses coragem. Disse-te que ia ser cavernoso, talvez um pouco doído, talvez até nem consigas logo à primeira sair desse lugar. Mas disse-te: coragem!

Coragem, que os comprimidos não te vão ajudar. Coragem, que o amanhã ainda vai saber a hoje e o passado como sal a mais na comida a toda a hora. Mas está aqui o sonho, e não tenhas pressa que a eternidade te ajuda a ter calma. Vais, um dia, aprender a respirar.

Vais.

Parar de correr. Ando tão lentamente. Depois tens de parar, que na solidão te perdeste, que te abandonaste, que não percebeste, que não tomaste conta de ti. Menina perdida, mulher derrotada, pessoas a mais, depois, a dizer-te o que fazer, como fazer, a tirarem o teu direito de voltar atrás.

Para mim.

Tenho fome. Por que não me dás de comer?

Escrever com o coração.

O pânico, meu deus, de me sentir nua.

A mãe gostava que eu corresse, assim, pela areia até ela. Agora, é diferente, e não havia de ser. Agora, é.

Não sei.

Nunca soube viver no agora, pequena. E talvez tenhas de ter um pouco mais de paciência com esta tua velha amiga: está na hora de me adormecerem.

Só hoje, ficas aqui até aquilo me levar?

Todos os dias, meu amor.

 

About the Author: Albertina Silva
Albertina Silva
Escreveu o livro "Acorda". Participou em blogs de escrita criativa e foi vencedora do 16º Campeonato de Escrita Criativa realizado por Pedro Chagas Freitas. Declamou poesia e ouviu poesia. Ausente do mundo da escrita durante alguns anos, regressa para dar vida à sua paixão de infância, talvez, vida. Tem 45 anos e acredita que é preciso viver para conseguir escrever.

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