Sofia Pereira

por Sofia Pereira

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Tenho tantas saudades tuas, tio Gentil. Daquelas saudades que apertam o peito e pesam no silêncio. Daquelas que não se apagam com o tempo — apenas se escondem entre os dias que passam e as horas ocupadas que tentam distrair-nos da dor.

Às vezes, pergunto-me: será que aí, em cima, atendem o telefone? Será que, de algum modo, consegues ouvir-me? Gostava tanto de ouvir a tua voz outra vez, sempre tão carinhosa, atenta e sábia.

Sinto falta das nossas conversas. Falávamos de tudo e vibrava com os nossos diálogos sobre a atualidade, a política, a sociedade e a economia. Tinhas sempre uma opinião formada, uma visão crítica, um conhecimento profundo do mundo, que eu admirava. Eras culto, informado e lúcido. Aprendi tanto contigo — não apenas pelo que dizias, mas pela forma como escutavas, como refletias, como respeitavas.

Recordo com carinho os nossos verões. As idas ao rio, os dias de calor cheios de riso e liberdade. E os Natais tão cheios de luz, de família, de partilhas sinceras. Os serões, contigo ao lado, a comer chocolate e a conversar até tarde.

Contavas-me histórias da Guerra do Ultramar. E eu ouvia-te com atenção e com respeito. Falavas com o coração ferido que só quem sofreu em silêncio consegue ter. Sempre com a memória das adversidades e das condições miseráveis que tiveste de enfrentar e superar. A guerra roubou-te tanta coisa, tio. Mesmo assim, resististe. Sobreviveste ao inferno e regressaste. Com a alma marcada. E lutaste pela vida até conseguires.

Foste sempre autónomo, independente e determinado. Um verdadeiro exemplo de coragem. Venceste um cancro. E nunca deixaste de ser aquele homem atento ao mundo, com quem eu podia falar de tudo.

Mas a guerra nunca te largou por completo. As cicatrizes eram profundas, invisíveis, mas reais. E, um dia, essa dor adormecida acordou sob a forma de uma demência profunda e galopante que te tirou para sempre de nós. Aos 69 anos, a tua mente começou a perder-se… e tu foste desaparecendo aos poucos, como a luz do dia quando o sol se esconde no horizonte — em silêncio, devagarinho, sem alarde, mas deixando tudo mais escuro à tua volta.

Passados quatro anos, ainda choro. Muito.

Choro por ti. Pela tua ausência. Pela falta que me fazes. Pela impossibilidade de ter mais um daqueles momentos nossos — uma conversa, um passeio, um abraço, um beijo.

Só eu sei a dor que trago dentro de mim.

Só eu sei o vazio que ficou.

Só eu sei o quanto te procuro, o quanto te chamo — às vezes, em sonhos; às vezes, em memórias.

Se aí, em cima, atenderem o telefone, tio, atende. Diz-me que estás bem. Que já não sofres. Que encontraste finalmente a paz que tanto mereces. Que continuas desse lado a ouvir-me, como sempre fizeste.

Porque eu continuo a falar contigo. No silêncio, nas lágrimas, nas lembranças. E vou continuar. Porque o amor, esse, não se esquece. Nunca.

Até sempre, tio Gentil.

About the Author: Sofia Pereira
Sofia Pereira
Com formação superior em Ciências Humanas e Comunicação, vive imersa nas palavras e na escrita desde sempre. Escreve sobre a Vida e o Mundo, a partir daquilo que observa, ouve, sente e pensa. A escrita é o seu meio de compreensão, reflexão e expressão, onde transforma as experiências diárias em algo profundo e significativo, partilhando com os outros a sua visão única do mundo.

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