Maria Reis

por Maria Reis

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Éramos apenas meninos embalados em sonhos. Despertávamos para a vida. Queríamos viver. Queríamos amar. Sim, sentíamos as amarras e sofríamos as limitações inerentes à época de ditadura em que vivíamos. Contudo, fazíamos os nossos voos.

Voávamos baixinho, mas voávamos… Era bem notória a nossa alegria de viver! A boa música animava sempre os nossos convívios. Adorávamos dançar. Não descurávamos a nossa formação. Apostávamos no sucesso dos nossos estudos. Partilhávamos saberes. Projetávamos ter um futuro independente e desafogado.

A vida chamava-nos.

Havia que usufruir de todos os momentos. Nada podíamos desperdiçar.

Numa consentida ilusão, teimávamos ignorar que, a passos largos, esses nossos doces momentos, por nós avidamente vividos numa profunda e íntima entrega, seriam eliminados, engolidos por espessas nuvens de breu.

Vários indícios iam-nos alertando para essa realidade cada vez mais próxima e, a isso, não nos podíamos alhear. Acontecia, então, que, teimando não acordar dos sonhos que acalentávamos, antevíamos um futuro incerto, muito instável e doloroso. Agarrávamos a esperança de tudo poder superar e, assim, nos íamos fortalecendo.

Sim, era enorme a nossa teimosia e éramos atormentados pela dúvida: como iríamos sobreviver a esse despertar? Nada fazia parar o tempo. Antes, este corria veloz! O fatídico dia aconteceu…

Escassos dias passados, chegou a carta:

“Não me envergonho de dizer que, por vós, uma lágrima rolou pela minha face. A partida de um navio é emocionante e chocante. São milhares de pessoas que gritam, choram, agitam lenços e bandeiras para dizer adeus a milhares de soldados que partem para o Ultramar. Felizmente, eu não tinha ninguém a despedir-se de mim. Espero ter à chegada.“

Já não éramos mais meninos. Transformados em guerreiros, havia que ir à luta.

Onde estavam, agora, os alegres encontros onde havia gargalhadas, animadas conversas e, ao som de belas melodias, se faziam promessas de amor recheadas de beijos, no aconchego de abraços?

Agora, havia, sim, encontros onde era ouvido o sinistro sibilar de balas que voavam sobre as suas cabeças, abraçava-se aquela “inseparável amante”, cujo gatilho devia ser habilmente “dedilhado”. Meninos transformados em soldados, obrigados a combater. Soldados que, demasiadas vezes, tombaram e deixaram viúvas as noivas que não chegaram a casar.

Na angústia vivida, apenas encontrávamos lenitivo nas cartas que trocávamos. Cartas que deixavam transparecer sofrimento. Cartas que traziam saudade. Cartas que faziam correr lágrimas. Cartas que traziam palavras de amor e também de esperança. Cartas que nos faziam sonhar com dias melhores.

O tempo parecia parar numa dolorosa agonia. Crescia o pânico aliado do medo de não ver aquele navio trazê-los de regresso. Embora não deixássemos que os pesadelos se sobrepusessem aos nossos sonhos e os apagassem, as incertezas eram uma constante. Os percalços vividos foram mais do que muitos.

Contudo, esse tão desejado e ansiado regresso aconteceu. O desejo expresso na dolorosa carta, no fatídico dia da partida, realizou-se: dois corações se uniram naquele abraço, beijos reacenderam aquele amor que a guerra não matou!

O que ficou para trás?

Que peso se carrega após as atrocidades do convívio com uma guerra?

Foram meninos para a guerra. Regressaram homens!

Foi naquela guerra que os seus ouvidos deixaram de escutar belas melodias, que os faziam sonhar, e se habituaram a arrepiantes sons que lhes provocavam pesadelos. Foi naquela guerra que muitos deixaram a sua vida quando ainda mal tinham começado a viver.

Quantos, ao regressar daquela guerra, não mais conseguiram despertar do tormento dos pesadelos, não mais conseguiram encontrar paz? E, ainda hoje, soam aos meus ouvidos as duras palavras que, no dia do regresso, me foram dirigidas pelo bom amigo, Capelão Militar:

“Estive na guerra e nunca peguei numa arma. O teu homem, como muitos outros, foi obrigado a combater, foi treinado para ser um assassino.“

Cinco décadas são passadas. Parece que foi ontem!

Assim aconteceu.

About the Author: Maria Reis
Maria Reis
Nasceu em 1947. É transmontana, sonhadora. Está aposentada da profissão de professora, tendo exercido docência nos 1º e 2º ciclo de Ensino Básico. O seu percurso de vida foi seriamente afetado pela Guerra Colonial Portuguesa, travada entre 1961 a 1974, período que viveu intensamente com o sofrimento de dolorosas perdas, saudades e muita instabilidade emocional. Acredita que a vida só faz sentido quando vivida com amor.

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  1. Maria Reis 06 Novembro 2023 at 11:59

    Obrigada Laura ! Beijinho

  2. Eduardo 07 Novembro 2023 at 08:42

    Como não sentirmos um nó na garganta,pois fomos actores também desses …Deliciosos..e…Também..Tenebrosos..Contrastes…Dessa época…Momentos ..Generosos..Magníficos duma Juventude..Livre e …TÃO SONHADORA…Que em determinado e…FATÍDICO…MOMENTO….UM GARROTE…NOS TENTOU DESMEMBRAR ..POR FORA E DILACERAR-NOS AS ENTRANHAS…TODOS OS NOSSOS BELOS PENSAMENTOS ALTRUÍSTAS … PARA UM FUTURO…ÍMPAR DE SENTIMENTOS DE AMOR SENTIDO …VIVIDO EM PLENITUDE…UNIVERSAL…!!!!..FICO POR AQUI..QUE PASSADO MAIS..DE..MEIO SÉCULO…VEM-ME UM ASSOMBRO…UM FRÉMITO.. QUE SINTO A ALMA …O ..CORAÇÃO…TODO O MEU SER…SER ENVOLTO NUM TURBILHÃO DE PENSAMENTOS ….AQUELE ABRAÇO MUITO FRATERNO E SOLIDÁRIO DO TEU LEAL AMIGO EDUARDO.

    • Maria Reis 07 Novembro 2023 at 17:50

      Com o meu fraterno abraço vai a minha gratidão pelas tuas palavras, meu querido amigo Eduardo.

  3. Isabel Mateus 07 Novembro 2023 at 10:01

    Um testemunho pungente acerca de histórias de vida ainda tão contemporâneas e já tão distantes na memória do tempo. Distantes porque desconhecidas (ou quase) para as gerações que se seguiram àquela dos «meninos-homens» que foram treinados para matar. É preciso narrar estes episódios com a mesma sensibilidade que encontramos neste texto.
    Muitos parabéns à querida Autora!
    Beijinho,
    Isabel

    • Maria Reis 07 Novembro 2023 at 17:59

      Com um beijinho muito afetuoso , minha querida Isabel, agradeço as suas palavras tão valiosas para mim !

    • Maria Reis 07 Novembro 2023 at 18:03

      Com um beijinho muito afetuoso agradeço as suas palavras para mim tão valiosas !

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