Sónia Brandão

por Sónia Brandão

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O Natal é — e sempre será — o momento de reencontros, de amigos com quem não partilhamos a vida diariamente, de amigos que nos acompanham, dia após dia, ao longo do caminho, mas, acima de tudo, com a família, que nos acompanha.

Estávamos em 1998…

A família tinha mudado. A vida tinha sido atingida pelo mais forte dos tormentos — a vida de todos.

Até ali, a noite de 24 de dezembro era preenchida com gargalhadas, com momentos de diversão, com conversas entre todos, ou somente com alguns, com sapatos na chaminé, com a sono que não chegava, porque, mesmo existindo a vontade de abrir os presentes no dia seguinte, a vontade de estarmos todos juntos era bem maior.

Em 1998, nada disso aconteceu.

Quatro meses antes, tudo mudou… Éramos uma família de 5, que, de um momento para o outro, desapareceu. Tornámo-nos meros espetros, dentro da nossa casa.

Aquela noite foi mais uma noite, sem que nenhum de nós pensasse em presentes, em gargalhadas. Sem que nenhum de nós tivesse vontade de nada.

Não houve presentes. Não houve conversa. Não houve nada. Cada um de nós se isolou, dentro da sua própria dor, e tornámo-nos mais estranhos do que se nunca nos tivesses encontrado.

Jantámos o tradicional bacalhau. Até hoje recordo que tive muita dificuldade em comer porque a vontade de chorar era demasiada.

O meu pai tinha partido e nada daquilo fazia sentido.

O sentido do Natal tinha-se perdido, achava eu, mas a vida ensinou-me que, por mais que os meus pensamentos possam parecer corretos, nem sempre o são. Raramente o são.

O Natal estava no calendário, mas nenhuma das pessoas que se encontrava naquela casa o viveu.

A vida podia ser menos irónica, mas, se o fosse, não seria a vida tal como a conhecemos.

1999

Se, no ano anterior, a noite tinha sido difícil, quase impossível de recordar, o ano de 1999 veio provar que tudo pode piorar quando o universo assim o decide.

Menos uma pessoa a mesa. Menos uma mãe presente. Mais um ser amado que se foi.

Em pouco mais de um ano, tinha perdido o meu pai e, agora, tinha partido a minha tia, aquela que segurou muitas das situações limite daquele ano.

Estávamos todos demasiado perdidos, demasiado sem rumo. Os adultos. Os adolescentes. As crianças.

Olhando para trás, aqueles momentos poderiam ter destruído para sempre esta família…

Mas não. No meio de toda a dor, existia uma criança demasiado pequena para perder a mãe, demasiado frágil para não ter a experiência de Natal e de família que todos os outros tinham tido ao longo dos breves anos que tínhamos.

2000

Não foi um bom ano, mas o Natal voltou a ser Natal!

Todos tínhamos cicatrizes ainda demasiado frescas, mas aquela frágil criança, mesmo sem saber, forçou-nos a regressar.

Naquele Natal, houve lágrimas, mas também gargalhadas, presentes, família, laços que foram reforçados, ligações recuperadas e os momentos vividos com mais certezas de que a vida passa a correr e de que, no fim, só as memórias ficam.

E, nessa noite, o que mais se fez foi viver o presente, aquela noite de 24 de dezembro, com a memória de todos os que já não estavam entre nós, mas que se mantinham na nossa mente e, acima de tudo, no nosso coração.

Hoje, em 2023, continuam a ser saudosas as noites do passado, mas as memórias e os momentos mantêm tudo vivo, tudo no sítio certo, tudo como deveria, mesmo que nenhum nós tivesse essa certeza no passado.

Hoje, como em anos anteriores, vamos recordar o passado, viver o presente e agradecer por estarmos presentes, mais uma vez, na vida uns dos outros, porque a família — aquela que nos irrita, que nos chateia, nos julga, nos destrói — também é aquela que nos define, aquela que nos constrói para o mundo, aquela que nos acompanha nos bons, mas, acima de tudo, nos maus momentos porque os vive connosco e porque as pessoas da nossa família são as primeiras a testemunhar quem somos e o que vivemos.

Feliz Natal!

About the Author: Sónia Brandão
Sónia Brandão
Apaixonada por palavras, aprendeu, desde nova, a criar realidades paralelas na sua mente — onde tudo era possível. "Amor de Perdição" foi o primeiro livro que leu. Tinha 13 anos e foi a mãe que lho sugeriu para se ocupar. Desde então, nunca mais parou de ler. Durante alguns anos, no entanto, parou de escrever: sentiu que tinha deixado de fazer sentido. Mas o confinamento fê-la regressar à escrita com mais força e determinação. Este ano, surgiu a vontade de partilhar com os outros o que coloca no papel.

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