Maria Reis

por Maria Reis

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Naquele dia 20 de novembro de 1971, eu já contava dois anos, três meses e seis dias após aquela dolorosa partida de mais um contingente de militares para terras de Angola.

Num palco de guerra, a dura disciplina militar não se compadecia, acaso um militar mostrasse um comportamento de inconformidade ou algum desacordo com a situação vivida. Assim, sucederam-se severas punições, “porradas”, em gíria militar. Aconteceu, portanto, que foram anuladas as férias, que aumentou o serviço a ser prestado na respetiva comissão.

Essa guerra estava a separar-nos. Essa prolongada comissão, em Angola, adiava a realização dos nossos sonhos e trazia-nos enorme instabilidade!

Até quando?

Na impossibilidade de encontrarmos uma resposta, apenas nos restava encontrar a coragem que nos desse força para terminar essa separação.

Assim aconteceu!

Nesse dia 20 de novembro de 1971, ocorreu o início do fim desse enorme pesadelo que durava já há demasiado tempo…

Escolhi o meu muito amado irmão — ele deu voz à vontade expressa naquela procuração — e, assim, numa íntima e emocionante cerimónia, se realizou o nosso casamento civil.

Impossível descrever, aqui, a felicidade que nesse dia me invadiu! Via já próxima a minha viagem e o meu casamento religioso em Angola. Via tornar-se realidade o nosso sonho de amor há tanto tempo por nós acalentado.

Terminada a cerimónia, corri aos correios para enviar um telegrama. A notícia chegou lá, a Teixeira de Sousa. Contudo, ironia, a notícia do casamento do alferes espalhou-se por todos os militares do quartel, por muitos civis da localidade, mas não chegou ao seu destinatário — esse encontrava-se, algures, no mato, numa operação militar, numa zona de risco.

Não fui ter com o meu amor a Teixeira de Sousa, conforme estava previsto. Não tivemos aquele casamento com honras militares e celebrado pelo amigo Manel, Capelão Militar, como estava a ser meticulosamente preparado. Uma inesperada transferência para Luanda alterou esses projetos. Assumo, no entanto, que ainda hoje sonho com esse casamento. Ainda hoje sinto saudades do que não aconteceu!

Sim, foi em Luanda o nosso reencontro, o nosso casamento religioso. Por vários contratempos ligados à vida militar, só pode acontecer mais tarde, a 11 de março de 1972.

Alguns dias passados, após a minha chegada a Luanda, passeávamos pela cidade quando fomos surpreendidos por alguém que caminhava na nossa direção, mostrando ar de espanto, como se estivesse a ver fantasmas. Ao chegar junto de nós, exclamou quase num grito:

— Então, pá, tu estás vivo?

Houve um prolongado e efusivo abraço.

Seguidamente, mais um desabafo:

— Eh, pá! Naquele dia só pensei: porra, lá se foi mais um casamento!

Sim, “naquele dia” tinha sido 20 de novembro de 1971.

Quis o destino que, “naquele dia”, uma jovem recém casada não tivesse ficado viúva no próprio dia do seu casamento.

Quis o destino que, “naquele dia”, um jovem alferes cometesse um ato instintivo e quase suicida, de pura sobrevivência; ato esse decisivo na retirada do inimigo, sem que se registassem baixas a lamentar, naquele violento ataque ouvido a quilómetros de distância — ataque que os surpreendeu, quando procediam ao aquartelamento, após longo percurso pela picada.

Quis o destino que esse alferes fosse o “meu alferes”!

Assim era aquela guerra, como são todas as guerras: num momento vive-se, no momento a seguir pode acontecer a morte.

Cinco décadas se passaram.

Em Luanda, construímos os fortes alicerces de uma vida.

Ali, superando as adversidades de uma atroz e, muitas vezes, incompreensível disciplina militar, fortalecemos o nosso amor, a nossa cumplicidade, a nossa resiliência.

Houve, sim, alguma loucura à mistura. Éramos tão jovens! Nessa loucura, vivemos intensamente o nosso amor e, nesses tempos conturbados, fomos felizes.

Hoje, olhando para essas décadas percorridas, sentimos orgulho. Foram muitos os obstáculos ultrapassados. Foram muitas as conquistas conseguidas. Foi uma linda família construída!

Hoje, 20 de novembro, celebramos “aquele dia”, o dia — aquele que, na nossa vida, brilhou mais que o mais puro dos diamantes!

Quando uma guerra nos separava, “naquele dia”, algo quase inexplicável nos aconteceu e, como que surgiu uma luz, aquela que parece ter iluminado os nossos passos.

Até hoje, nada mais nos separou. Sentimos a felicidade de estar de bem com a vida e, na intimidade do nosso amor, brindamos a esse dia em especial, mas também a todos os dias que temos vivido.

 

About the Author: Maria Reis
Maria Reis
Nasceu em 1947. É transmontana, sonhadora. Está aposentada da profissão de professora, tendo exercido docência nos 1º e 2º ciclo de Ensino Básico. O seu percurso de vida foi seriamente afetado pela Guerra Colonial Portuguesa, travada entre 1961 a 1974, período que viveu intensamente com o sofrimento de dolorosas perdas, saudades e muita instabilidade emocional. Acredita que a vida só faz sentido quando vivida com amor.

Deixa um comentário:

  1. Maria Reis 20 Novembro 2023 at 12:49

    Obrigada, Laura

    • emootiva
      emootiva 20 Novembro 2023 at 13:12

      Sempre emocionantes as tuas histórias. ❤️

  2. Maria Reis 20 Novembro 2023 at 20:26

    Laura, esta e outras das minhas histórias são um testemunho do meu percurso de vida. Foram tempos difíceis mas saimos vitoriosos

  3. Isabel Mateus 20 Novembro 2023 at 21:27

    O que seria da vida sem amor? Um amor com rasgos de bravura e pejado de um pouco de loucura romântica e sadia… Parabéns ainda por mais esta emocionante história da nossa História recente. Um beijinho.

  4. Maria Reis 21 Novembro 2023 at 11:30

    Minha querida Isabel , que bom Tê-la desse lado e receber o seu carinho ! Um beijinho com muito afeto.

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