Sónia Brandão

por Sónia Brandão

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«Pôr-se a jeito.»

A expressão que mais se ouve por estes dias.

A expressão mais ridícula que podemos usar para nos referirmos a situação trágicas que ouvimos no nosso quotidiano, sempre que ligamos a televisão em qualquer canal de notícias.

«Pôr-se a jeito.»

Ninguém se põe a jeito para ser agredida. Ninguém se põe a jeito para ser maltratada. Ninguém se põe a jeito para ser violada. Ninguém se põe a jeito para ser assassinada.

Ponto.

Ninguém se coloca numa situação de perigo propositadamente. Ninguém espera um acontecimento trágico quando sai de casa.

Ninguém.

Já tive várias conversas acaloradas com colegas e amigos por utilizarem este tipo de argumento sempre que se trata de um crime cometido contra mulheres. Não sou tolerante com este tipo de desculpa, porque um crime contra alguém não se permite ser justificado com desculpas.

Um crime é um crime.

Mas, ultimamente, tenho-me visto em conversas com algumas mulheres que usam este mesmo argumento para justificar o desfecho de muitos casos trágicos que povoam as nossas vidas.

Não aceito.

Não aceito que uma mulher, como aquelas que são violadas, agredidas, assassinadas, tenha o direito de utilizar o argumento de «pôs-se a jeito». Não pode ser usado, porque só é argumento numa conversa porque não se trata de uma amiga, de uma irmã, de uma filha. Aí, os argumentos mudam.

Mudam porque nos toca de uma maneira pessoal.

Desde sempre achei que o meu corpo só a mim diz respeito, e não é a forma como me visto, a maneira como sorrio, as expressões que uso, que dão direito a alguém de exercer qualquer tipo de opinião não solicitada, de ato indesejado para com a minha pessoa.

Mas, enquanto muitas de nós acharmos que a forma como alguém se veste, os saltos que alguém utiliza, a maquilhagem que alguém coloca para se sentir bonito, é uma forma de provocação para com o outro, vamos continuar a ouvir que se pôs a jeito para ser vítima de tudo.

É crime violar, agredir, matar.

Não importa se a vítima estava despida em plena praça pública. O máximo que lhe pode acontecer é ser presa por atentado ao pudor, mas nunca pode ser vítima de qualquer outra forma de violência.

Na maioria dos crimes, as pessoas que os cometem são seres próximos, bastante próximos, e nos quais a vítima confia.

Quer sejam namorados, amigos, ninguém entra em casa de conhecidos com a certeza de que tudo vai correr bem. Mas acreditam, creio eu, que aquela pessoa que, em algum momento, fez parte da sua vida é de confiança e que não representa perigo.

Esse é o erro.

Confiar nas pessoas.

Mas temos de o fazer para viver.

Isso não é pôr-se a jeito. É simplesmente viver.

Empatia. Conseguir colocar-se no lugar do outro sem pré-julgamentos. Só empatia e sororidade.

About the Author: Sónia Brandão
Sónia Brandão
Apaixonada por palavras, aprendeu, desde nova, a criar realidades paralelas na sua mente — onde tudo era possível. "Amor de Perdição" foi o primeiro livro que leu. Tinha 13 anos e foi a mãe que lho sugeriu para se ocupar. Desde então, nunca mais parou de ler. Durante alguns anos, no entanto, parou de escrever: sentiu que tinha deixado de fazer sentido. Mas o confinamento fê-la regressar à escrita com mais força e determinação. Este ano, surgiu a vontade de partilhar com os outros o que coloca no papel.

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