Maria João Amaral Graça

por Maria João Amaral Graça

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— Foi assim que tudo aconteceu. Tive conhecimento da morte da minha mãe, porque telefonei para o cemitério, senão nem sabia que tinha morrido —  disse ela, sem um rasgo de emoção a correr-lhe nas veias.

— E o que isso a fez sentir? — Ouviu alguém perguntar, ao longe.

O silêncio foi a resposta, acompanhado de um longo suspiro. Desde muito cedo que Grace se sentia diferente. Isolada da realidade, permitiu que o medo excessivo de tudo, misturado com a falta de coragem, se apossasse da sua essência, transportando-a para um mundo onde somente cabiam as suas fantasias.

Da janela do seu quarto, olhava, esperançosa, para as pessoas que circulavam na rua, mas nada acontecia que a fizesse acreditar que dias melhores viriam. Os anos voavam diante dos olhos, e nada evoluía ou se modificava. Até mesmo a música, que por vezes tocava na aparelhagem da sala, quando o pai se lembrava que Lisboa existia, era igual. Conhecia de cor os passos da valsa que costumava dançar com ele, ao ritmo de Richard Clayderman e a sua Ballade pour Adeline. Parecia um disco riscado pelas falhas irónicas do destino.

Grace achava impossível libertar-se daquele lugar horrível que a impedia de respirar. As lágrimas que sufocavam dentro dos seus olhos eram fortes como o aço, e nunca caíam. Inevitavelmente, acabou por tornar-se numa pessoa gélida e amarga, distante das ondas de calor que só os sentimentos verdadeiros são capazes de produzir.

Regras, regras e mais regras. Impostas por aqueles que se julgavam mais do que os outros. Mais educados. Mais abastados. Mais cultos. Mais refinados. E, do outro lado, cativa na penumbra do seu mundo imaginário, Grace tentava sobreviver, evitando os “mais”, mesmo que isso lhe valesse um lugar no pódio dos “menos”: Menos simpática. Menos requintada. Menos interessada. Ela abraçava os menos todos e mais algum, só para não ser igual a eles, ao contrário da primogénita, da preferida, criada à imagem dos seus pais defeituosos. Compreendia-se, assim, a sua obsessão doentia pelo individualismo, que crescia diariamente no seu coração.

As sombras do egoísmo começavam a surgir no seu rosto, entranhando-se-lhe na carne, sôfregas por encontrar um hospedeiro. A enganadora sensação de segurança, que somente a arrogância lhe dava, tinha um sabor agridoce, irresistível. Aliás, era impensável esperar dela qualquer gesto de amor e empatia, pois ninguém a ensinara a amar, a envolver-se, a sentir. A única preocupação da família era a de que aprendesse a dizer «obrigado», «se faz favor», «queira desculpar o incómodo»; a levantar-se para cumprimentar as visitas; a saber com exatidão a disposição dos talheres, de carne e peixe; a tirar os pratos da mesa, a seguir ao almoço, mesmo que ainda não tivesse terminado; a conhecer as “Regras da Etiqueta”, a bíblia pregada à sua mesa de cabeceira, vital para o seu amadurecimento.

«Tenho de sair deste inferno de loucos, com a mania das realezas, que me impedem de ser quem eu sou. Por quanto tempo mais serei uma boneca articulada, controlada por vozes de comando e olhares de desprezo?», refletia, esmorecida, não se apercebendo de que, ao mesmo tempo que tentava encontrar forma de acabar com as sombras que a perseguiam, um sentimento de revolta ia-se intensificando no seu coração. Tornava-se perigoso continuar a viver naquele covil de devotados, que não olham a meios para promover um falso bem. Pobres criaturas! Os doentes eram eles, que não imaginavam que estavam a criar um monstro.

Grace desejava fugir a qualquer preço, daquela gente que a julgava impiedosamente, tentando corrigi-la com palavras rudes e sarcásticas. Ela não carecia de um exorcismo, mas, sim, de um plano de fuga. Precisava de livrar-se das cinquenta amarras com que a haviam aprisionado. Não importava se ficaria sozinha no mundo. Aprendera a gostar da solidão, a sua única companhia nos dias cinzentos. Mas, se, pelo menos, ela tivesse quem a ajudasse a fugir, alguém que lhe mostrasse o caminho da liberdade, seria tudo mais fácil e menos penoso.

Do nada, sentiu um arrepio percorrer todo o seu corpo, ao reparar na figura de um homem, sentado à sua frente, e que a observava, sem nada dizer.

— Será que, um dia, terei a coragem necessária, doutor? — Perguntou.

Ele olhou para as notas escritas no seu caderno, e retorquiu:

— São 50, então? 

— Sim. Não será nada fácil. 

— Podemos começar a trabalhar as dez mais urgentes — sugeriu ele —, que são as seguintes:

  1. Baixa auto-estima
  2. Timidez
  3. Insegurança
  4. Revolta
  5. Pessimismo
  6. Insensibilidade
  7. Desmotivação
  8. Fobia social
  9. Ansiedade
  10. Medos infundados

— Vamos a isso! — concordou Grace, entusiasmada. — Afinal, a Felicidade não se ganha. Vai-se conquistando!


Nota:
A todas as pessoas que combatem diariamente os seus medos e fantasmas, com muita força de vontade, fé e perseverança. Temos todos direito à Felicidade. Só precisamos de saber procurá-la dentro de nós.

About the Author: Maria João Amaral Graça
Maria João Amaral Graça
Nasceu em 1976, em Lisboa, onde reside atualmente. Aos quinze anos anos, descobriu o gosto pela escrita. Licenciou-se em comunicação social e cultural. Exerceu jornalismo durante 1 ano, mas a dificuldade em conciliar a profissão de jornalista com a maternidade fê-la decidir por um trabalho mais tranquilo. Há vinte anos que é assistente administrativa, mas o sonho de publicar um livro continua vivo, levando-a a investir em cursos de escrita criativa e a participar em concursos literários. Criou o blogue "Aqui Há Histórias", onde escreve de tudo um pouco, e em qualquer género, porque o importante mesmo é nunca parar de escrever.

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