por Sónia Brandão

Distraída, olho para o nada.
Estou totalmente alienada da realidade que me rodeia.
Algo muito meu: estou presente, mas não estou lá de facto; sou somente presença.
Ouço o meu nome e olho para as pessoas que me rodeiam. Todas estão com um ar surpreso no rosto.
Nenhuma delas olha para mim, mas para lá de mim.
Volto a ouvir o meu nome.
E, desta vez, consigo perceber de que direção vem o som. Volto-me nessa direção e olho-te.
Olho-te, pela primeira vez, em anos.
Surpreendida, mas não surpresa. Sempre existiu algo dentro de mim que me disse que este dia ia chegar. Este momento estava escrito, como muitos diriam.
Não sorrio. Acho que não mereces esse sorriso. Olho-te somente.
Olho-te e percebo as pequenas, grandes mudanças em ti.
Estás muito diferente do homem que conheci no passado.
Não és o mesmo. Eu também não sou a mesma.
Mas talvez o tempo tenha sido mais generoso comigo do que foi contigo.
«Como estás?», perguntas com uma voz brincalhona. Poderia pensar que ainda te conheço pelo tom de voz, mas sei que não.
Fico indecisa em relação ao que te dizer. Poderia optar pelo que me apetece dizer, mas não. Vou optar pela educação: «Bem. E tu, como estás?», pergunto.
Ouço alguém ao meu redor dizer: «Olha o que a noite trouxe! A escuridão!» Não consigo precisar quem o fez, mas, pelo teu olhar, sei o quanto te incomodou.
Sinto os teus olhos a sondar os meus, mas não cedo. Não vou trocar olhares contigo. Perdeste esse privilégio há muito tempo.
Ouço a tua voz a responder à minha pergunta com um: «Estou bem.»
Passado
Éramos dois semi-apaixonados pela ideia do que era a paixão, o amor, a vida em comum. Mas também éramos dois egoístas que nunca queriam ceder.
Éramos dois seres à procura da felicidade, sem nunca a termos conseguido encontrar em nós.
Éramos dois idealistas com ideias muito diferentes, que desistimos sem, de facto, termos tentado.
Tu partiste sem olhar para trás. Um dia, disseste adeus e foste viver a tua vida e procurar uma forma de transformar os teus ideais em realidade.
Eu procurei ser feliz.
Somente feliz comigo. E, assim, construir novas aventuras e novos momentos acompanhada.
Volto a ouvir a tua voz.
Sei que estás a conversar com os outros que conheces.
Sei que estás a tentar ser sociável, algo que, na verdade, nunca foste.
Este encontro iria acontecer em algum momento. A vida é feita deles.
Voltas a dirigir a tua atenção para mim.
Por breves segundos, os nossos olhos encontram-se, algo que eu preferia que não acontecesse. O olhar não mente.
Precisas de algo de mim.
Sinto-o.
Olho-te nos olhos, desta vez com a certeza de que o quero fazer, e pergunto: «Que precisas?» Sinto a surpresa no teu olhar. Pensaste que não o iria perguntar.
Depois de alguns segundos de silêncio, respondes: «Falar.» Não me surpreende. Algo de que sempre precisaste foi de falar. O silêncio nunca foi teu amigo. Os teus fantasmas perturbam-te aí.
Questiono-me qual será o assunto. Ficámos anos sem nos vermos, sem contacto. O que podes ter para me dizer?
Este não é o momento para conversas.
«Podemos falar, se precisas, mas não hoje», digo pausadamente. Tu concordas.
Trocamos números e ficamos de marcar essa conversa.
Sei que vai acontecer. Não é somente um atirar para o futuro e nunca ser real. Vamos conversar.
Depois
Conversar. Estou aqui para a conversa.
Sento-me à tua frente com alguma apreensão. Não sei qual é o tema.
Começas com conversa de circunstância: o que há de novo, coisas banais. Demoramos algum tempo nessa conversa, mas depois entramos na conversa que queres ter.
«Porque estamos aqui?», pergunto.
Vejo-te a respirar fundo. Levantas o olhar e surpreendes-me.
«O meu terapeuta pediu-me para voltar ao passado e eu senti que era aqui, a nós, que tinha que regressar. Tinha que estar contigo, olhar-te e reconhecer o que se passou entre nós da minha perspetiva.»
Olho-te e aceno com a cabeça em concordância.
«Eu sei que te magoei, mas preciso que saibas o quanto me magoaste também. Preciso dizer-te no que eu me tornei depois de ti…»
Falas durante longos minutos. Dizes o que precisas e, curiosamente, sinto orgulho em ti por finalmente reconheceres que precisas de ajuda; por saberes, ao fim destes anos, que não és o super-homem, somente homem.
Nada do que me dizes é novo para mim. Há muito que reconheci, para mim, o mal que te causei de forma inconsciente. Também me perdoei por isso no passado. Hoje, só preciso ouvir esse reconhecimento de ti, e o perdão, porque se estamos aqui foi porque ele aconteceu dentro de ti.
Terminas de falar, com os olhos lacrimejantes. Sei o que significa este reconhecimento.
«Está tudo bem. Eu sei», digo somente, enquanto estendo a mão até ti, que agarras como se fosse um colete salva-vidas.
Ficamos assim durante vários minutos, até que ambos estejamos recompostos.
«Obrigado. Precisava de te dizer tudo. Desculpa não o ter feito antes.» Olho-te nos olhos e digo: «Está tudo bem. Para podermos seguir em frente, por vezes precisamos de revisitar o passado. Eu já o fiz, sem a tua presença, mas tu precisavas de mim aqui. E está tudo bem. Espero ter ajudado, que fiques em paz e sejas feliz», termino.
Afastamo-nos em paz. Pelo menos eu estou em paz.
Foi o fim que deveria ter sido antes, mas só foi possível agora. Porque as pessoas que foram nossas, em algum momento, são sempre uma porta entreaberta para nós mesmos.
Hoje
Olho-te pela milésima vez.
Abraço-te e sussurro: «Obrigada.»
É tão bom olhar para trás e perceber quem somos hoje.
Igualmente idealistas, mas, desta vez, na mesma ideia.