Sofia Reis Cardoso

por Sofia Reis Cardoso

Partilhar:

Este é e sempre foi um tema muito sensível para mim. Acredito que, hoje, aos 32 anos, me encontro na fase em que me sinto mais bem resolvida com este assunto.

Desde os tempos de escola que, por muito que tentasse ser uma boa amiga, filha, neta, irmã, sobrinha, vizinha, aluna, etc. – independentemente do papel em que me encontrava –, o que eu era enquanto pessoa não era suficiente para ter destaque relativamente ao meu corpo.

Era naturalmente «grande», «gordinha». Na escola, lembro-me de ter dificuldade nos exercícios de Educação Física; de ser a última escolhida para formar equipas nas aulas, aquela que desistia no corta-mato, cujas pernas roçavam uma na outra e criavam feridas. Podia ser uma boa aluna, em todas as outras disciplinas, mas em Educação Física era sempre condicionada pelo meu corpo.

Desde muito jovem iniciei uma cultura de dietas demasiado restritivas. Era chamada a atenção por comer demais ou por gostar muito de doces, mas sem grandes orientações sobre o que era uma alimentação saudável. Não sei precisar que idade tinha, mas cerca de 12 ou 13 anos, quando fui com o meu pai, pela primeira vez, a uma ervanária que ficava naquela que os Tomarenses conhecem como sendo a «Rua do Táxis». Tenho, neste momento, a imagem bastante presente de procurarmos uns «comprimidos naturais» para me ajudar a emagrecer.

Nesta fase da adolescência, já era das mais desenvolvidas fisicamente entre as minhas colegas. Desde logo, a menstruação apareceu-me aos 13 anos — algo que, ainda assim, não foi muito assustador, pois já tinha acompanhado essa novidade quando aconteceu com a minha irmã, seis anos mais velha do que eu. Mas fui percebendo que, comigo, tudo acontecia muito rápido. Outro dos episódios que nunca esqueci, motivados pelo meu peso e constituição física, esteve relacionado com a dificuldade em encontrar disfarces de Carnaval que me servissem e fossem ajustados à minha idade. Os disfarces infantis eram demasiado pequenos para a minha estatura. Invariavelmente, estes episódios faziam-me sentir diferente.

O acontecimento que possivelmente mais me magoou — e que teve mais impacto na minha autoestima e no meu processo de crescimento — prendeu-se com um comentário reiterado, feito por uma colega de escola que nem sequer era da minha turma. Por algum motivo — que julgo nem ter a ver diretamente comigo —, éramos consideradas «rivais». Diria que ela era magra, de estatura dita normal. A Nanda — era assim o nome dela — apelidou-me, mais do que uma vez, de «pote de banhas». Era profundamente humilhante e revoltante ser tratada daquela maneira, só porque sim.

Apesar de gostar muito de comer, a genética também não esteve muito a meu favor. Os meus avós maternos eram obesos. A minha mãe era muito magra e comia pouco, com medo de engordar.

No processo de amadurecimento, percebi que desde sempre procurei na comida um refúgio. Julgava que o prazer imediato que determinado alimento me dava supria a ausência de alguém, preenchia o vazio da falta de mãe. Uma luta desigual de muitos anos, que só compreendi com a maturidade.

Este comportamento refletia-se também no facto de comer comida ou doces feitos pelas mães das minhas amigas. Era, para mim, um ato de amor e carinho. Uma das minhas «mães emprestadas», que esteve muito presente na minha vida até aos 18 anos, fazia um bolo de chocolate em formato retangular que, ao recordá-lo, me provoca uma inexplicável sensação de preenchimento e amor. Era muito comum eu e a minha amiga — filha de sangue desta minha «mãe emprestada» — estarmos a estudar e a mãe aparecer com um mimo culinário para nos motivar. Carinhosamente, esta mãe chamava esses mimos de «placebos». E este amor que recebi foi determinante na construção da pessoa que sou hoje.

Hoje, tenho plena noção de que foram anos de uma relação muito disfuncional com a comida e com o meu corpo. Sempre tive dificuldade em encontrar roupas que me assentassem bem. Apesar de não ter assim tanta barriga, era muito difícil as calças «passarem-me» nas pernas — que sempre foi a zona mais larga do meu corpo. Acabava por ter de comprar sempre uma numeração que, na barriga, ficava mais larga. Recordo-me perfeitamente de, numa altura, estar a experimentar o número 44 de umas calças numa loja de roupa e ter pensado que, pelo menos, ainda teria o 46 se fosse necessário. Alguns anos depois, já nem o 46 me servia. Chegou uma altura em que só conseguia usar vestidos, ou calças sem botões, ou com elástico.

Invariavelmente, olhava para as raparigas da minha idade e julgava que nunca conseguiria ser como elas, que nunca teria um peso dito normal, nem iria gostar do que via no espelho.

Para além de todas estas memórias — na sua maioria infelizes —, deparo-me, uns anos mais tarde, já no início da idade adulta, com uma situação verdadeiramente triste: procurava um patrono para o estágio da Ordem dos Advogados e fui a uma entrevista com dois advogados — um homem e uma mulher — que trabalhavam em conjunto. Já não me recordo qual foi a justificação dada naquele momento para não ter ficado com o estágio. Curiosamente, a advogada que me «deu» o estágio veio a trabalhar no mesmo escritório que aqueles.

A determinada altura, a primeira advogada que referi encontrou-me no escritório e inicialmente não me reconheceu. Quando lhe disse quem era, mostrou-se muito espantada, pois naquela altura eu estava bastante mais magra. Dirigiu-me elogios e comentários que eu não solicitei e ainda teve o atrevimento de assumir que não aceitou trabalhar comigo devido ao meu peso.

A sensação que tenho é a de que, como naquela altura me sentia «magra», a revelação não teve grande impacto. Mais tarde, nas muitas fases em que voltava a aumentar de peso, aquela situação regressava à minha memória — e a sensação era devastadora.

Para culminar, na recuperação da minha doença — fase em que atingi mais de 110 quilos, não só pela medicação associada, mas também pela estatura que já tinha antes de adoecer —, cheguei a ouvir comentários sobre o meu aspeto físico, quando o mais importante foi ter sobrevivido a uma experiência de quase morte.

Defendo intensamente que comentários sobre o corpo são indesejados, seja qual for a circunstância. Felizmente, ao dia de hoje, aceito o meu corpo tal qual ele se encontra e agradeço, menos vezes do que devia, tudo o que ele suportou.

Mas nem sempre foi assim.

About the Author: Sofia Reis Cardoso
Sofia Reis Cardoso
Escrever, ler e dançar são as suas formas preferidas de passar o tempo. Estudou Direito, trabalha no Departamento de Contencioso de uma Seguradora, mas é nas letras e no papel que encontra o seu refúgio e a sua maior concretização. Natural de Tomar, entregou o seu coração a Lisboa aos 18 anos e é com a capital que mais se identifica. A Emootiva é uma extensão daquilo que a apaixona e onde quer continuar os seus passos, juntamente com outras escritoras.

Em destaque:

Deixa um comentário:

Também podes gostar de ler: